A notificação do Procon-SP à Nintendo – datada de 15 abr. 2025 – reacendeu o debate sobre até onde vai a liberdade das plataformas digitais para alterar unilateralmente seus termos de uso. O órgão de defesa do consumidor demandou explicações sobre mudanças aplicadas a usuários brasileiros sem pré-aviso nem mecanismo de concordância expressa (opt-in). Fica claro, portanto, que os chamados “termos de uso” abandonaram o papel de simples aviso e passaram a ser contratos de adesão entre provedores e consumidores. Embora o suporte seja digital, a relação continua submetida às regras gerais do direito privado, em especial aos arts. 104 e 421 do Código Civil: manifestação de vontade (ainda que coletiva), objeto lícito e forma não vedada em lei.
No caso concreto, os Termos da Nintendo eShop regem acesso à loja, compras de conteúdo digital, armazenamento em nuvem e funcionalidades conexas — o cerne da prestação contratual. Alterar cláusulas essenciais sem oferecer oposição efetiva configura prática abusiva nos termos do art. 51, X, do CDC: toda disposição que permita ao fornecedor modificar unilateralmente o contrato é presumidamente nula. Segundo relatos de usuários, a Nintendo restringiu acesso a jogos já pagos e alterou as regras de cancelamento, o que afronta o regime consumerista.
Outro ponto relevante é que as alterações implementadas também dão ênfase ao endurecimento das disposições relativas à proteção da propriedade intelectual. As novas cláusulas contratuais vedam, de forma expressa, atos como cópia, engenharia reversa, modificação, distribuição não autorizada e o uso de quaisquer meios destinados a contornar medidas técnicas de proteção, sob pena de bloqueio e até inutilização definitiva dos serviços e dispositivos vinculados à conta Nintendo.
Embora a tutela da propriedade intelectual seja legítima, não se trata de um direito absoluto. Sua função social impõe que seja exercida de maneira compatível com os interesses coletivos e os direitos fundamentais, especialmente em sociedades digitais marcadas por assimetrias informacionais. Assim, a proteção não pode ser encarada exclusivamente sob a ótica dos interesses privados do fornecedor.
Medidas que culminem em sanções automáticas, sem oportunizar o contraditório, revelam-se manifestamente incompatíveis com o sistema que propõe o respeito aos deveres de boa-fé objetiva e à função social dos contratos. A violação atinge direitos fundamentais do consumidor: informação adequada, proteção contra práticas desleais e preservação da legítima confiança.
Esse cenário tangencia a cláusula geral da boa-fé objetiva (arts. 113 e 422 CC), parâmetro integrativo das relações contratuais contemporâneas. O Superior Tribunal de Justiça confirmou que o microssistema consumerista se aplica integralmente a contratos eletrônicos transnacionais diante de abuso de poder econômico, empregando a regra da interpretação mais favorável (art. 6.º VIII CDC). Some-se a isso a hipossuficiência informacional, ou digital, agravada pela falta de clareza nas cláusulas. Não por acaso, o art. 9.º §4.º da LGPD exige novo consentimento quando mudam as bases legais do tratamento de dados, reforçando a necessidade de opt-in.
O movimento do Procon-SP não é cruzada isolada, integra discussão mais ampla sobre a suposta neutralidade dos contratos digitais. Num ambiente de IA, plataformas globais e algoritmos opacos, urge reavaliar os contornos da autonomia privada. Regulação responsiva, aliada à atuação coordenada de Senacon, ANPD e CADE, pode substituir a velha lógica do click-wrap, aceite por mero clique, por práticas contratuais realmente leais. Atualizar o marco jurídico não enfraquece a proteção do consumidor; ao contrário, eleva os deveres de transparência e boa-fé. Cláusulas unilaterais abusivas tendem, assim, ao expurgo. Do contrário, continuaremos reféns de um “consentimento digital” meramente formal — e o Procon-SP seguirá apagando incêndios em vez de prevenir chamas.
Para as empresas, o caminho é claro: instaurar due process contratual que inclua revisão multidisciplinar, comunicação prévia em linguagem simples, redline público das versões, mecanismos de opt-in ou cancelamento sem penalidade, garantia de direitos adquiridos e registro auditável das versões. Compliance contínuo, monitoramento regulatório e plano de crise completam a armadura que, além de mitigar riscos, transforma a boa-fé em ativo reputacional.
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Autoras:
Tatiana Coutinho
Hellen Pessanha
Créditos da imagem: Dineshraj Goomany