A lógica da autotutela: entre liberdade contratual e abuso
A autotutela não é, em si, um instituto negativo. Quando assentada em condições objetivas e fruto da liberdade dos contratantes, pode ser altamente eficiente. No direito comparado, existe a chamada repossessão (repossession), que permite ao credor retomar diretamente o veículo financiado em caso de inadimplência, sem necessidade de acionar o Judiciário.¹
Em termos macroeconômicos, mecanismos como esse podem gerar vantagens relevantes, pois aumentam a oferta de crédito, reduzem o risco das instituições financeiras e tendem, em consequência, a diminuir os juros cobrados ao consumidor.
O problema surge quando a autotutela se dissocia dessa lógica e passa a ser exercício unilateral de poder. A fronteira entre autotutela legítima e arbitrariedade está justamente no equilíbrio contratual. Quando uma parte não tem alternativa real – como ocorre no uso de plataformas digitais essenciais – não há liberdade, mas submissão.
O poder unilateral das big techs e a erosão da previsibilidade
As grandes empresas de tecnologia concentram controle absoluto sobre serviços que se tornaram indispensáveis. No Brasil, é praticamente impossível prescindir de aplicativos como WhatsApp ou Instagram. Essa dependência cria vulnerabilidade: o usuário aceita termos impostos de forma padronizada, sem espaço para negociação.
É nesse cenário que a autotutela se converte em arbitrariedade. Bloqueios automáticos de contas, mudanças repentinas de algoritmos ou alterações unilaterais de regras de acesso – como ocorre na Uber, onde motoristas podem ser descredenciados sem aviso prévio – revelam a disparidade entre partes. O usuário não tem alternativa viável: ou se submete ou perde acesso a um serviço essencial.²
Diferentemente de contratos bilaterais equilibrados, em que cada parte avalia custos e benefícios, aqui vigora a imposição unilateral, com cláusulas abertas e critérios de aplicação opacos. A ausência de previsibilidade mina a confiança e amplia o risco econômico e jurídico.
A reação judicial: reparação tardia e insuficiente
O Judiciário tem reconhecido abusos. Tribunais estaduais já determinaram a reativação de contas de motoristas descredenciados do Uber e de entregadores excluídos do iFood sem contraditório prévio, impondo indenizações por lucros cessantes e danos morais. Casos semelhantes têm protegido influenciadores digitais cujas contas foram bloqueadas sem justificativa clara.
Essas decisões são importantes, mas revelam um limite estrutural: a tutela judicial é sempre posterior ao dano. Para quem depende economicamente da plataforma, cada dia de bloqueio representa perda imediata de renda. A morosidade judicial, nesse contexto, fragiliza a efetividade do direito e reforça a assimetria entre usuário e empresa.
Smart contracts e blockchain: mecanismos de previsibilidade
É nesse ponto que tecnologias descentralizadas oferecem uma alternativa. Smart contracts, programados em blockchain, operam segundo lógica condicional simples: se uma situação X ocorrer, desencadeia-se automaticamente a consequência Y.³ Essa execução automática, transparente e imutável reduz drasticamente o espaço para decisões arbitrárias.
Se aplicados às plataformas digitais, poderiam impedir bloqueios unilaterais baseados em critérios obscuros. As regras de suspensão, por exemplo, seriam codificadas previamente e visíveis a todos os usuários. O efeito seria automático e objetivo, sem margem para subjetividade ou decisões ad hoc.
Além disso, a natureza distribuída da blockchain garante que a gestão de dados e decisões não fique concentrada em um único ente, mas seja verificada coletivamente. Isso reforça a confiança, reduz o risco de manipulação e aumenta a segurança jurídica nas relações digitais.
Conclusão: descentralizar para proteger o usuário e a própria regulação
O uso abusivo da autotutela por empresas de tecnologia mostra como a concentração de poder ameaça a previsibilidade jurídica e econômica. O Judiciário tenta conter excessos, mas sua atuação é lenta e reativa.
Smart contracts e blockchain não são solução mágica, mas representam uma oportunidade concreta de repensar a arquitetura regulatória das plataformas. Ao deslocar o poder decisório da empresa para regras objetivas e transparentes, essas tecnologias podem devolver equilíbrio às relações digitais.
Num contexto em que serviços tecnológicos são cada vez mais essenciais, o debate sobre descentralização não é apenas técnico: é regulatório e político. A questão central é se aceitaremos que empresas privadas continuem a aplicar sanções unilaterais em escala global – ou se adotaremos mecanismos capazes de devolver previsibilidade, liberdade contratual e segurança aos usuários.
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Notas e Referências
DELGADO CASTRO, Jordi; PALOMO VÉLEZ, Diego; DELGADO, Germán. Autotutela, solución adecuada del conflicto y repossession: revisión y propuesta. Revista de Derecho, Universidad Católica del Norte, v. 24, n. 2, 2017.
DIVINO, Sthéphano Bruno Santos; DE ARAÚJO, Beatriz Simon Halasz. Responsabilidade pela exclusão injustificada de contas pessoais em redes sociais: entre o exercício regular do direito e a prática abusiva. In: Revista de Direito Privado (Revista dos Tribunais), vol. 117/2023, p. 183 – 203, Jul - Set / 2023 [e-book].
TALAMINI, Eduardo. CARDOSO, André Guskow. Smart contracts, “autotutela” e tutela jurisdicional. In: Execução Civil: Novas tendências. Org. Marco Aurélio Belizze, Teresa Arruda Alvim, Trícia Navarro Xavier Cabral. São Paulo: Editora Foco, 2022.
¹ DELGADO CASTRO, Jordi; PALOMO VÉLEZ, Diego; DELGADO, Germán. Autotutela, solución adecuada del conflicto y repossession: revisión y propuesta. Revista de Derecho, Universidad Católica del Norte, v. 24, n. 2, 2017, p. 280-281.
² DIVINO, Sthéphano Bruno Santos; DE ARAÚJO, Beatriz Simon Halasz. Responsabilidade pela exclusão injustificada de contas pessoais em redes sociais: entre o exercício regular do direito e a prática abusiva. In: Revista de Direito Privado (Revista dos Tribunais), vol. 117/2023, p. 183 – 203, Jul - Set / 2023 [e-book].
³ TALAMINI, Eduardo. CARDOSO, André Guskow. Smart contracts, “autotutela” e tutela jurisdicional. In: Execução Civil: Novas tendências. Org. Marco Aurélio Belizze, Teresa Arruda Alvim, Trícia Navarro Xavier Cabral. São Paulo: Editora Foco, 2022.
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Autores
Tiago Andrade
Créditos da Imagem: Unsplash
Artigo publicado originalmente no JOTA.