1. Introdução
A recuperação judicial é um instituto jurídico que visa à recuperação da empresa em crise econômico-financeira, permitindo que ela reorganize suas dívidas e continue a operar no mercado. No entanto, para que o processo seja bem-sucedido, é fundamental que a empresa disponha de recursos financeiros suficientes para arcar com as despesas operacionais durante o período de recuperação.
Sabe-se que a Recuperação Judicial é um procedimento relativamente recente no Brasil e que, na prática, confere pouca segurança, por um lado, aos credores, que enfrentam inúmeros óbices para o recebimento dos créditos devidos e, por outro, as próprias empresas recuperandas, que, com dificuldades para a geração de caixa, tem baixas chances de soerguimento.
Nesse sentido, uma das maiores barreiras comerciais que inviabilizam o instituto da Recuperação Judicial diz respeito, justamente, ao comprometimento da capacidade de faturamento do devedor, uma vez que as instituições financeiras tendem a limitar a concessão de crédito as empresas recuperandas.
Isso porque, como dispõe PEREIRA (2023, p. 14)1 o problema de liquidez pode ser endereçado no Plano de Recuperação Judicial, com a elaboração de estratégias para a reestruturação das dívidas existentes, a venda de ativos, ou ambos. Contudo, a aprovação de um plano pode levar meses até a sua concretização e, durante esse período, o devedor precisa, muitas vezes, de capital de giro para preservar as suas atividades.
Nesse sentido, BEZERRA FILHO (2022) complementa ao argumentar que não existe Recuperação Judicial possível sem o chamado "dinheiro novo". Isso porque qualquer empresa em atividade normal necessita de crédito para implementar seus projetos, o que faz normalmente, com a tomada de empréstimos em bancos e investimentos em geral. Ocorre que, no momento em que a empresa mais necessita de aportes financeiros, os financiadores se retraem, criando dificuldades intransponíveis para fornecimento de crédito.
Justamente nesse contexto surge o DIP, um instituto inspirado no Chapter 11 do Bankruptcy Code dos Estados Unidos, como uma importante ferramenta para garantir a continuidade das operações da empresa em recuperação judicial e, consequentemente, viabilizar o seu soerguimento.
Conhecida como DIP Financing, que significa debtor in possession, ou, em tradução livre, “devedor na posse”, essa modalidade de financiamento consiste, basicamente, na concessão de empréstimo por investidores (bancos, empresários e etc) à empresa devedora em recuperação judicial, para que ela possa atender suas despesas operacionais, como pagamento de fornecedores, salários, despesas administrativas etc., durante o curso do processo.
2. Análise da evolução legislativa trazida pela Lei 14.112/20
No Brasil, o financiamento DIP foi consolidado através da Lei 14.112/20, responsável pela reforma da Lei 11.101/2005, que regula a recuperação judicial, extrajudicial e a falência. Até então, a legislação brasileira não previa expressamente a possibilidade de financiamento por acionistas ou partes relacionadas da empresa em recuperação judicial.
Após a reforma, a Lei 11.101/2005 passou a dispor, em sua Seção IV-A, acerca do "Financiamento do Devedor e do Grupo Devedor durante a Recuperação Judicial", apresentando a possibilidade de financiamento mediante oneração ou alienação fiduciária de bens e direitos, regulada pelos arts. 69-A e seguintes do referido dispositivo.
Com as mudanças trazidas pela Lei 14.112/2020, o instituto da Recuperação Judicial dispõe, agora, de importantes ferramentas para viabilizar o financiamento DIP, tornando-o mais atrativo ao credor do financiamento, uma vez que lhe garante prioridade no recebimento de seu crédito.
Essa priorização do credor se dá, principalmente, pelo entendimento de que os financiamentos DIP são créditos extraconcursais. Esse entendimento, por sua vez, decorre da interpretação dos artigos 49 e 67 da LRFE, que tratam os créditos concursais – e, portanto, sujeitos aos efeitos da RJ – como sendo aqueles existentes até a data do pedido, e créditos extraconcursais como decorrentes de obrigações contraídas pelo devedor durante a recuperação judicial.
Isso significa dizer, portanto, que o financiamento DIP concedido a empresa recuperanda não estará sujeito ao plano de recuperação judicial e, por consequência, não podem ser novados.
As novidades trazidas pela Lei 14.112/2020 buscam, também, garantir a validade e eficácia do negócio jurídico do financiamento DIP. Isso porque, como se sabe, a
classificação de determinado crédito como extraconcursal não é suficiente para mitigar os riscos dos investidores no cenário de eventual falência.
Nesse sentido, vem à luz o artigo 66-A2, que prevê justamente a irreversibilidade da eficácia da alienação ou oneração de bens após a consumação do negócio jurídico, estabelecendo como requisitos (i) a boa-fé do financiador e (ii) a autorização judicial autorização judicial expressa ou prevista em plano de recuperação judicial ou extrajudicial aprovado.
O artigo 69-B3, por sua vez, estabelece que a natureza extraconcursal do financiamento DIP e garantias outorgadas pelo devedor em favor do financiador de boa-fé não poderão ser modificadas em grau de recurso, caso já tenha sido realizado o desembolso dos recursos. Como dispõe PEREIRA (2023), a inclusão desse dispositivo foi inspirada no artigo 364(e) do U.S. Bankruptcy Act e transporta para nosso ordenamento o conceito de “equitable mootness”, que possui correspondência com a teoria do fato consumado.
Diante disso, verifica-se que os artigos 66-A e 69-B trazidos pela reforma preencheram duas relevantes lacunas da LFRE, referentes a (i) garantia de prioridade ao pagamento dos financiamentos DIP, que não era prevista expressamente na lei; e (ii) esses financiamentos, que também não era garantida de forma clara.
O objetivo é, assim, encorajar novos investidores a aportar capital em empresas recuperandas, mitigando seus riscos. Nesse sentido, PEREIRA (2023) entende que essa previsão concede segurança aos investidores que desejam realizar o Financiamento DIP de forma tempestiva e condizente com a usual urgência da tomadora no desembolso dos seus recursos.
Apesar dos benefícios trazidos pela reforma ao regulamentar as operações relativas ao financiamento DIP, possibilitando a captação de recursos pelas empresas em recuperação judicial, é essencial observar o funcionamento do instituto na prática, através da análise de casos que discutiram questões relevantes acerca da disciplina.
3. O caso OGX
Cabe trazer à tona o caso do Grupo OGX, responsável por atividades de exploração de petróleo e gás natural, que ingressou com seu pedido de recuperação judicial em 30 de outubro de 20134, após ter sua receita impactada diante da incapacidade comercial de atender a produção esperada pelo mercado.
Os planos de recuperação judicial das empresas integrantes do Grupo OGX foram negociados em linha com as disposições previstas no plan support agreement firmado pelos credores titulares de bonds5, tendo como base a captação de financiamento DIP pelo Grupo, no montante de US$ 215 milhões. Em paralelo, o juízo recuperacional autorizou, em 27 de janeiro de 2014, que o Grupo OGX onerasse bens de seu ativo para oferecer em garantia, o que possibilitou o levantamento de US$ 115 milhões, relativos à primeira tranche do financiamento.
Os planos recuperacionais das empresas definiu as bases para a captação da segunda parcela do financiamento DIP, no valor de no valor de US$ 90 milhões, estabelecendo duas séries suplementares de debêntures, nos seguintes termos:
(i) 1ª série: entrega de ações correspondentes a 41,9767% do capital social da OGX reestruturada aos bondholders, sob a condição de que esses deveriam subscrever e integralizar debêntures da 3ª série em montante correspondente ao valor não subscrito e integralizado das debêntures da 2ª série;
(i) 2ª série: entrega de ações correspondentes a 23,0233% do capital social da OGX reestruturada;
(i) 3ª série: entrega de ações correspondentes a 23,0233% do capital social da OGX reestruturada, com a possibilidade de subscrição de debêntures por credores concursais ou extraconcursais aderentes.
Apesar dos questionamentos levantados pelos credores na recuperação judicial, especialmente em relação a violação do princípio da par condicio creditorum, por conta dos fatores de conversão de crédito utilizados, a decisão que homologou o plano foi mantida em sede recursal6.
Assim, com a efetivação do financiamento DIP, a OGX se tornou mais atrativa para investidores, chegando a obter outros empréstimos de natureza extraconcursal que viabilizaram sua sobrevivência.
Por fim, Richard Kebrdle e Ricardo Pasianotto ponderam que:
“por causa dos atrasos causados tanto pelo trâmite do processo em primeira instância e no Tribunal de Justiça, é difícil considerar o processo de financiamento DIP da OGX como um sucesso absoluto. Devido ao atraso, a empresa foi forçada a continuar sem fundos suficientes para fazer frente às suas despesas, com novas perdas operacionais, e foi exposta ao risco do mercado de petróleo em declínio. Um processo mais rápido e mais eficiente teria beneficiado a empresa, seus credores e os investidores backstop.”7.
4. O caso Americanas
O caso do Grupo Americanas, por sua vez, é o exemplo recente mais emblemático do ordenamento jurídico brasileiro. Com um passivo de aproximadamente R$48 bilhões, cerca de 10 mil credores e quase 17 mil ações trabalhistas em curso, a Americanas, em sua recuperação judicial, também buscou o instituto do financiamento DIP para ganhar fôlego e evitar a falência.
No caso da Americanas, o empréstimo de R$ 2 bilhões, aprovado em 9 de fevereiro de 2023 pelo Juízo da 4ª Vara Empresarial da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro, está previsto no plano de recuperação judicial, que prevê a injeção de capital de R$ 12 bilhões por parte dos acionistas de referência do Grupo.
A primeira do financiamento DIP, no valor de R$1 bilhão, já foi integralizada pelos acionistas e levantada pelo Grupo. A segunda tranche, por sua vez, no valor de R$500,6 milhões, está sendo realizada por meio da emissão de debêntures simples, sem a possibilidade de conversão em ações, com foco em investidores privados.
Essa medida fez com que as ações da Americanas disparassem pela primeira vez após o anúncio da crise financeira. As ações do Grupo tiveram alta de 18,75% na máxima do dia 11 de outubro8. Para os investidores, a medida inspira confiança de que a empresa consegue atrair recursos adicionais e viabilizar seu soerguimento diante do cenário desafiador.
5. Conclusão
O caminho para a garantia de segurança jurídica – tanto aos credores quanto aos devedores – no Brasil é longo. Por essa razão, os procedimentos relativos à insolvência estão em constante discussão doutrinária e jurisprudencial.
É necessário que o processo de recuperação judicial seja constantemente aperfeiçoado para garantir não só maior celeridade do rito, mas também medidas eficientes que possibilitem a captação de investimentos pelas empresas devedoras, a fim de viabilizar seu soerguimento.
Nesse sentido, a reforma da Lei 14.112/2020 trouxe importantes alterações para o financiamento DIP no Brasil, tornando o instituto mais acessível e flexível, que tende a gerar um aumento no número de recuperações judiciais bem-sucedidas.
Notas
1 PEREIRA, Guilherme. 14. Dip Financing: Evolução Legislativa e Análise de Casos In: PEREIRA, Guilherme. Litigation Finance e Special Situations - Ed. 2023. São Paulo (SP):Editora Revista dos Tribunais. 2023. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/doutrina/litigation-finance-e-special-situations-ed-2023/1865872882. Acesso em: 6 de Novembro de 2023.
2 Art. 66-A. A alienação de bens ou a garantia outorgada pelo devedor a adquirente ou a financiador de boa-fé, desde que realizada mediante autorização judicial expressa ou prevista em plano de recuperação judicial ou extrajudicial aprovado, não poderá ser anulada ou tornada ineficaz após a consumação do negócio jurídico com o recebimento dos recursos correspondentes pelo devedor.
3 Art. 69-B. A modificação em grau de recurso da decisão autorizativa da contratação do financiamento não pode alterar sua natureza extraconcursal, nos termos do art. 84 desta Lei, nem as garantias outorgadas pelo devedor em favor do financiador de boa-fé, caso o desembolso dos recursos já tenha sido efetivado.
4 Processo nº 0377620-56.2013.8.19.0001, que tramitou perante a 4ª Vara Empresarial da Comarca do Rio de Janeiro.
5 Bond é o termo usado para definir títulos de débito tipicamente emitidos por empresas e governos, os “bonds”. Os Bondholder, por sua vez, é o investidor – seja uma pessoa ou entidade – que detém bonds. Esses títulos podem ser adquiridos diretamente de quem emite, seja uma empresa ou um governo, mas também podem ser adquiridos de outros bondholders no mercado secundário.
6 “Infere-se que não houve violação do princípio da paridade horizontal, nem do postulado da razoabilidade, na adoção, pelas agravadas, dos fatores de conversão de créditos extraconcursais em capital da OGX REESTRUTURADA. A diferença para com os créditos concursais decorre de um fato econômico e financeiro quase intuitivo, qual seja, o elevado risco assumido pelos novos investidores (Bondholders Aderentes) e a urgência urgentíssima de capital imediato para evitar a quebra da empresa” - .Cf. acórdão proferido nos autos do Agravo de Instrumento nº 0039682-69.2014.8.19.0000, julgado pela 14ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em 3 de dezembro de 2014.
7 KEBRDLE, Richard S; PASIANOTTO, Ricardo M. Os Desafios do “Financiamento DIP” em Casos de Reestruturação Brasileiros. Revista de Direito Recuperacional e Empresa, vol. 1, 2016, pp. 6-7.
8 Localizado em https://epocanegocios.globo.com/empresas/noticia/2023/10/americanas-dispara-apos-nova-proposta-a-credores.ghtml
Referências bibliográficas
FERREIRA, Guilherme. DIP Financing: alternativa para empresa em recuperação judicial. Valor Econômico. Disponível em: https://valor.globo.com/financas/coluna/dip-financing-alternativa-para-empresa-em-recuperacao-judicial.ghtml. Acesso em 6 de novembro de 2023.
PEREIRA, Guilherme. Litigation Finance e Special Situations: Financiamento de litígios, aquisição de direitos creditórios e outras operações. Revista dos Tribunais - Ed. 2023.
DIP financing não é remédio milagroso para empresa em recuperação, diz Noronha. Consultor Jurídico - Conjur. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-jul-07/dip-financing-nao-remedio-milagroso-rj-noronha/. Acesso em 6 de novembro de 2023.
FRAZÃO, Giulia. Americanas anuncia 2ª tranche de Financiamento DIP em R$ 500,6 milhões. Monitor do Mercado. Disponível em: https://monitordomercado.com.br/noticias/47245-americanas-anuncia-2a-tranche-de. Acesso em 10 de novembro de 2023.
Autores: Denis Brum Marques, Marcos Antonio Pereira, Ingrid Costa, Yasmin Goulart e Isadora Warken.
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