O sistema de tutelas provisórias no Brasil passou por uma profunda transformação com o advento do atual Código de Processo Civil. A partir da criação desse códex, buscou-se não apenas simplificar o sistema, mas torná-lo mais efetivo, célere e aderente às necessidades do jurisdicionado. O modelo anterior, que separava a tutela cautelar da tutela antecipada em regimes autônomos, foi superado, dando lugar a um sistema mais harmônico e funcional.
Atualmente, as tutelas provisórias se dividem em duas espécies: tutela de urgência e tutela de evidência. A tutela de urgência, por sua vez, se desdobra em duas modalidades: a cautelar e a satisfativa (ou antecipada). A cautelar tem por finalidade assegurar a utilidade do processo principal, protegendo-o contra o risco de perecimento do direito, enquanto a satisfativa antecipa, total ou parcialmente, os efeitos da tutela final, entregando de imediato o bem da vida pleiteado, ainda que de forma provisória.
Por outro lado, a tutela de evidência prescinde do requisito de urgência. Sua lógica se sustenta na manifesta plausibilidade do direito, sendo aplicável quando a resistência da parte contrária é manifestamente infundada ou quando há prova documental robusta que demonstra, de plano, o direito do autor.
Um dos grandes avanços do atual Código de Processo Civil foi a introdução da possibilidade de se requerer tutela de urgência satisfativa em caráter antecedente. Nesse cenário, o autor, diante de uma situação de urgência, não precisa formular desde logo todo o pedido de mérito. Apresenta uma petição inicial simplificada, limitada a expor os fatos urgentes, o direito que aparenta ter e o pedido de tutela antecipada, indicando de forma resumida o que será o pedido principal.
Se o juiz entende presentes os requisitos, isto é, a probabilidade do direito e perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo, concede a tutela. A partir desse momento, o procedimento apresenta uma dinâmica peculiar. Concedida a tutela, caberá ao autor aditar a petição inicial no prazo de 15 dias, complementando seus fundamentos, juntando novos documentos e formulando de maneira completa o pedido principal.
Paralelamente, abre-se espaço para que o réu, uma vez citado, reaja. E aqui reside um dos grandes pontos que por muito tempo se fez de debate da doutrina e da jurisprudência: a ausência de impugnação por parte do réu conduz à estabilização da tutela, na forma do artigo 304 do CPC?
Mas o que significa, exatamente, a estabilização? Trata-se de um fenômeno processual no qual a decisão que concedeu a tutela provisória se torna estável, conservando seus efeitos no tempo, sem transitar em julgado e sem que o mérito da demanda tenha sido definitivamente apreciado. O processo, então, é extinto sem resolução do mérito, e a decisão permanece produzindo efeitos enquanto não for objeto de ação autônoma destinada à sua revisão, reforma ou invalidação, ajuizada no prazo de dois anos.
Essa técnica processual tem por objetivo oferecer uma resposta rápida, efetiva e funcional às demandas de urgência, reduzindo custos, tempo e sobrecarga do Judiciário. Contudo, exige das partes uma atuação tempestiva, sob pena de sofrerem os efeitos da estabilização.
O legislador foi claro ao prever que a estabilização ocorre se o réu não interpuser recurso contra a decisão concessiva da tutela. Tradicionalmente, esse recurso é o agravo de instrumento, previsto no artigo 1.015, inciso I, do CPC.
No entanto, nesse ponto, a doutrina processual, bem como o Superior Tribunal de Justiça, tem defendido que não é obrigatório que o réu se utilize exclusivamente do recurso, mitigando, portanto, o rol de oposição a estabilização. Isso porque a apresentação de contestação também se mostra suficiente para afastar a estabilização, desde que, nela, conste impugnação expressa e específica aos fundamentos que embasaram a concessão da tutela, esse foi o recente entendimento do Superior Tribunal de Justiça ao julgar o REsp n. 2.025.626/RS, de relatoria da Ministra Maria Isabel Gallotti.
Esse entendimento, ao nosso sentir, se apoia em princípios estruturantes do processo civil contemporâneo, como o devido processo legal, a cooperação, a boa-fé e, sobretudo, a primazia da solução de mérito.
A formalização excessiva, que obrigaria o réu a recorrer, mesmo já contestando a demanda, acabaria por esvaziar o contraditório e impor uma leitura restritiva do acesso à justiça. Assim, quando o réu apresenta sua defesa de mérito, atacando os pressupostos da tutela, está, ainda que por via diversa, expressando sua oposição à decisão interlocutória que concedeu a tutela antecipada.
Portanto, a estabilização não decorre de uma omissão absoluta do réu, mas sim da sua inércia qualificada, no sentido de não impugnar de nenhuma forma a decisão concessiva. Se o réu permanece completamente silente, seja sem recorrer, seja sem apresentar contestação, então a estabilização opera plenamente.
Uma vez estabilizada, a tutela provisória de urgência requerida em caráter antecedente não gera coisa julgada material, mas adquire eficácia prática extremamente semelhante, na medida em que produz efeitos de forma estável e duradoura, até que, eventualmente, seja revista, reformada ou invalidada por meio de ação autônoma.
O artigo 304 do CPC disciplina expressamente que, na hipótese de não impugnação da decisão concessiva da tutela, esta se estabiliza, extinguindo-se o processo sem resolução do mérito. Nesse cenário, a única via prevista para rever essa decisão é a propositura de uma ação autônoma de impugnação, no prazo de dois anos, contados do trânsito em julgado da decisão que extinguiu o processo.
A doutrina é praticamente uníssona ao reconhecer que, passado esse prazo sem que haja o ajuizamento da ação, os efeitos da decisão permanecem de forma definitiva, ainda que, tecnicamente, sem formar coisa julgada material, como bem pontua Cassio Scarpinella Bueno:
Essa manutenção dos efeitos da tutela antecipada, aliás, é o que parece querer significar a estabilização prevista pelo caput do art. 304. Nada além disso. Tanto que o § 6º do art. 304 afasta, expressamente, a viabilidade de haver formação de coisa julgada daquela decisão, repetindo que seus efeitos se estabilizam até que haja “decisão que a revir, reformar ou invalidar, proferida em ação ajuizada por uma das partes”, em alusão à previsão do § 2º do mesmo dispositivo. O § 6º do art. 304, a propósito, tem o condão de evitar discussões interessantíssimas sobre haver, ou não, coisa julgada material na decisão que concedeu a tutela antecipada a final estabilizada. Não há e nisto o dispositivo é claríssimo, revelando qual é a opção política que, a este respeito, fez o legislador. (BUENO, 2017)
Na mesma linha, Daniel Amorim Assumpção Neves é ainda mais contundente ao afirmar que:
O dispositivo é comemorado pela melhor doutrina, que mantem tradição do direito pátrio de reservar a coisa julgada apenas a decisões proferidas mediante cognição exauriente. Afinal, não parece ter muito sentido lógico se conferir a imutabilidade e indiscutibilidade próprias da coisa julgada material a uma decisão proferida mediante cognição sumária. A certeza se torna imutável e indiscutível, a probabilidade não. (NEVES, 2017).
Por outro lado, há entendimento na doutrina no sentido de que os efeitos próprios da coisa julgada ficariam suspensos até o transcurso do prazo decadencial para o ajuizamento da ação revisional, previsto no artigo 304, parágrafo segundo, do CPC.
Para Misael Montenegro Filho, por exemplo, ultrapassado o prazo para a propositura da ação revisional, seria cabível, inclusive, a ação rescisória para desconstituir os efeitos da tutela estabilizada, atribuindo-lhe, portanto, natureza equiparada à coisa julgada material após o decurso do prazo decadencial:
Coisa julgada em condição suspensiva: Embora a parte inicial do § 6º da norma em exame preveja que a decisão que concede a tutela não fará coisa julgada, esse dispositivo deve ser interpretado de forma conjugada não apenas com os demais parágrafos que integram o artigo, como também com o art. 502, textual em prever que denomina-se coisa julgada material a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso. Assim, a decisão que concede a tutela antecipada e que não é atacada por recurso ou impugnada pela contestação não produz coisa julgada material durante o prazo de que a parte dispõe para propor a ação a que se refere o § 5º. Contudo, ultrapassado o prazo sem que o direito de ação seja exercitado, a relação de direito material é acobertada pelo manto da coisa julgada, sem que possa ser (re)discutida, ressalvada a possibilidade do ajuizamento da ação rescisória, fundada em uma das hipóteses listadas no art. 966. (FILHO, 2018)
Mostra-se mais adequada, ao nosso sentir, a posição defendida por Cassio Scarpinella Bueno e Daniel Amorim Assumpção Neves, na medida em que, para os que sustentam a tese de suspensão dos efeitos da coisa julgada até o decurso do prazo da ação revisional, o efeito positivo da coisa julgada não se aplicaria a essa decisão, tratando-se, portanto, de uma coisa julgada atípica, desprovida de plena eficácia nos moldes tradicionais.
É nesse sentido que Fredie Didier Jr., amparado no artigo 502, do CPC, sustenta a inexistência de coisa julgada na hipótese de estabilização da tutela provisória, uma vez que a imutabilidade e a vedação à rediscussão recaem exclusivamente sobre os efeitos da decisão, e não sobre seu conteúdo propriamente dito. (DIDIER JR, 2017).
Constata-se que a opção legislativa de afastar a formação de coisa julgada sobre a decisão que concede a tutela estabilizada revela-se acertada, uma vez que a imutabilidade deve estar reservada ao juízo de certeza próprio da cognição exauriente. Nesse contexto, mostra-se igualmente adequada a vedação ao manejo da ação rescisória contra referida decisão.
Vale dizer que, ao que parece, o legislador adotou conscientemente um regime jurídico que, embora não culmine na coisa julgada, produz efeitos quase que equiparáveis, funcionando como uma verdadeira blindagem processual, capaz de impedir futuras discussões sobre os mesmos fatos e fundamentos.
Trata-se, portanto, de uma técnica processual extremamente relevante, que prestigia a efetividade, a celeridade e a segurança jurídica, mas que impõe às partes, especialmente ao réu, uma atuação processual diligente e tempestiva, sob pena de sofrerem os efeitos de uma decisão que, embora não seja coisa julgada material, se comporta, na prática, como tal.
A sistemática da estabilização da tutela provisória de urgência em caráter antecedente reflete uma opção clara do legislador por um modelo processual que prestigia a efetividade, a segurança jurídica e a responsabilidade processual das partes.
Se, por um lado, permite que uma decisão proferida em cognição sumária produza efeitos estáveis, por outro impõe ao réu o ônus de se manifestar tempestivamente, seja por meio de recurso, seja por meio de impugnação na contestação, sob pena de sofrer os efeitos da estabilização.
Com efeito, uma vez estabilizada, a decisão adquire um grau de imutabilidade que, embora não se confunda formalmente com a coisa julgada, opera efeitos equivalentes no plano prático tornando-se definitiva na ausência de provocação no prazo legal, limitando-se, como bem pondera a melhor doutrina, exclusivamente sobre os seus efeitos.
Portanto, o procedimento impõe às partes, e especialmente aos profissionais que atuam no contencioso, uma postura processual atenta, estratégica e tecnicamente qualificada.
Referências:
BUENO. Cassio Scarpinella. Novo Código de Processo Civil anotado / Cassio Scarpinella Bueno. São Paulo: Saraiva, 2015
DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paulo Sarna; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil - V.2 Ed. 12º. São Paulo: JusPodivm, 2017.
FILHO, Misael Montenegro. Processo Civil Sintetizado. 15º ed. rev. e atual. São Paulo: Forense, 2018
REsp n. 2.025.626/RS, relatora Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 4/6/2024, DJe de 5/9/2024
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Autores:
Gustavo Coelho
Samuel Dione