Nas últimas semanas, a notícia do ajuizamento de pedido de recuperação judicial do grupo 123 Milhas[1] tomou os noticiários e assustou até mesmo quem está habituado com o tema, em razão do alto número de credores: mais de 700 mil credores foram arrolados na recuperação judicial.
A título de curiosidade, a maior recuperação judicial do país em relação a quantidade de credores pertencia a OI, com pouco mais de 159 mil credores[2], o que demonstra o impacto social e financeiro da recuperação judicial da 123 milhas.
Além disso, desperta a atenção a notícia de que a recuperação judicial teve a sua decisão de processamento revogada, após o deferimento do efeito suspensivo no Agravo de Instrumento 2314369-49.2023.8.13.0000, interposto pelo Banco do Brasil, um dos credores da recuperação judicial.
Nessa decisão, o desembargador relator Alexandre Victor de Carvalho, integrante da 21ª Câmara Cível Especializada do TJMG, concluiu pela necessidade de realização de constatação prévia, cujo objetivo é que sejam apuradas as reais e concretas condições de funcionamento da 123 milhas, de modo que, durante a diligência, o perito possa analisar também se a documentação apresentada pelas empresas está em observância ao art. 51 da Lei 11.1001/2005 (LRF), legislação que regulamenta o procedimento de recuperação judicial e falências.
Esse novo modelo, que permite a análise prévia da empresa antes do deferimento do processamento da recuperação judicial, foi introduzido pela Lei 14.112/2020, através do § 5º, do art. 51-A, o qual dispõe que “a constatação prévia consistirá, objetivamente, na verificação das reais condições de funcionamento da empresa e da regularidade documental, vedado o indeferimento do processamento da recuperação judicial baseado na análise de viabilidade econômica do devedor“.
Na prática, significa dizer que será nomeado um perito para verificar, de forma técnica, se a atividade empresarial de fato ocorre como alegado pelas empresas recuperandas. Essa constatação evitaria situações nas quais as empresas devedoras apresentam bons números em seus relatórios financeiros, mas que não condizem com a realidade do seu cenário econômico. Levando-se em conta a documentação apresentada, o juiz não teria know-how (ou seja, embasamento técnico) específico para analisar a documentação requerida pela LRF.
Antes mesmo da introdução do art. 51-A na LRF, já era comum que, caso os juízes tivessem dúvidas das condições da empresa e da veracidade da documentação juntada, fosse determinada a nomeação de um profissional especializado, tendo em vista que os documentos apresentados possuem cunho estritamente técnico, havendo a necessidade de uma multidisciplinariedade para a compreensão dos documentos.
Essa possibilidade já decorria da interpretação extensiva do artigo 52 da LRF, o qual já previa que “estando em termos a documentação exigida no art. 51 desta Lei, o juiz deferirá o processamento da recuperação judicial” [3], além da Recomendação 57 de 22/10/2019 do CNJ para que os magistrados adotem procedimentos prévios ao exame do feito.
De todo modo, o maior questionamento no tocante ao deferimento do processamento da recuperação judicial baseado unicamente em uma análise meramente formal do juiz em relação à documentação apresentada pela empresa devedora, é que, quando realizada a análise por um profissional técnico e capacitado na área de economia, administração ou contabilidade, verificava-se que os documentos apresentados não refletiam a real situação da empresa.
Não era raro que, após o deferimento do processamento da recuperação judicial, o administrador judicial nomeado visitasse o estabelecimento comercial da empresa devedora e constatasse que a empresa não tinha mais qualquer atividade, nem tinha condições de gerar qualquer benefício decorrente da atividade empresarial. Essas empresas, na verdade, só existiam formalmente, no papel, mas não geravam empregos, nem circulavam produtos ou serviços, tampouco geravam tributos ou riquezas, motivo fundamental para que o instituto da recuperação judicial seja concedido: a preservação da atividade empresarial e seus consectários.[4]
Assim, surgiu a necessidade de se desenvolver um mecanismo que procedesse com a verificação prévia da documentação técnica apresentada pela empresa devedora, bem como de suas reais condições de funcionamento a fim de se garantir a efetividade da recuperação judicial, sua adequada aplicação em benefício da sociedade e da economia nacional, combatendo-se o uso desviado e fraudulento da Justiça.[5]
Até mesmo porque espera-se que o juiz tenha domínio às matérias de direito, mas não que ele possua formação técnica em economia, administração ou contabilidade para analisar o teor do documentos previstos no art. 51 da LRF – daí a importância da nomeação de um profissional especializado.
Em entrevista realizada em julho de 2020 pela XX USP International Conference in Accounting a respeito da utilização do instrumento de perícia prévia, quatro juízes de direito atuantes no TJSP informaram o seguinte: [6]
- O instrumento de perícia prévia é utilizado para a tomada de decisão de deferir, ou não, o processamento da recuperação judicial, no entanto, nem todos a adotam para todas as recuperações que são responsáveis;
- Não cabe ao juiz, lendo a inicial, perceber se há necessidade ou não da perícia prévia, mas nas recuperações de grande vulto consideram aconselhável;
- Nas recuperações menores, em que não há adoção da perícia prévia, o próprio juiz analisa os documentos, mesmo não tendo formação contábil, pois o objetivo não é verificar a correção ou não daquela contabilidade, mas sim analisar a narrativa da história da empresa e também dos fatores que levaram à crise da empresa, além dos outros documentos que instruem o pedido, tais como o número de ações que a devedora é autora e ré.
Em relação à vantagem da adoção da perícia prévia, os juízes entrevistados apontaram que ela evita movimentar a máquina judiciária de maneira inútil, uma vez que aponta desde logo se o pedido de recuperação não é sério. Já do ponto de vista da pretensa recuperanda, um laudo de perícia prévia bem elaborado evita a falência da empresa e dá mais robustez à pretensão de recuperação judicial.
Por outro lado, ainda de acordo com a entrevista, no tocante às desvantagens, há de se considerar que, a depender da situação específica, o lapso temporal pode acarretar a inviabilidade da recuperação da empresa em crise econômico-financeira, uma vez que o processo fica num estado de espera, que acaba gerando uma morosidade que pode ser fatal para a empresa em crise.
Outra desvantagem apontada pela XX USP International Conference in Accounting é o fato de que a perícia prévia pode não permitir o deferimento do processamento da recuperação judicial com base unicamente em um laudo que é apenas provisório.
Ademais, na hipótese de nomeação de um perito que eventualmente não será o administrador judicial, o custo da perícia pode se tornar uma desvantagem para a recuperanda,
Neste ponto, cumpre ressaltar que já há entendimento jurisprudencial no sentido de que o perito responsável pela realização da constatação prévia não pode ser posteriormente nomeado como administrador judicial.
Em recente julgamento sobre o tema, [7] o Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul (TJMS) anulou uma decisão que autorizou o processamento de uma recuperação judicial e determinou que o parecer prévio sobre a real situação da recuperanda fosse refeito.
Isso porque, além de o perito não ter analisado uma manifestação prévia apresentada por um dos credores, ele posteriormente foi nomeado como administrador da recuperação judicial, o que acabou evidenciando a suspeição do profissional, a teor do que preceituam os arts. 145 e 148, II, ambos do Código de Processo Civil.[8]
Um dos maiores críticos sobre o instituto da constatação prévia e referência no direito empresarial, Fábio Ulhoa[9], corrobora sobre a impossibilidade de o encarregado da perícia prévia servir como administrador judicial na sequência do caso. Veja:
“[…] Atribuo isso à expectativa do profissional de confiança do juiz, encarregado da tarefa, de vir a servir como administrador judicial, caso deferido o processamento da recuperação. Com essa motivação, ele exorbita um pouco de suas funções para auxiliar o requerente a aprimorar a instrução do pedido inicial. Sem a constatação prévia, há um só interessado no deferimento do processamento da recuperação judicial, que é o devedor; com a constatação prévia, os interessados passam a ser dois: o devedor e o profissional encarregado de a realizar.”
Ainda de acordo com os dados obtidos pela XX USP International Conference in Accounting, os magistrados entendem ser de extrema relevância que o profissional nomeado – ou, os profissionais, considerando que uma equipe multidisciplicar é ainda mais eficaz, tendo em vista que os atos e o objeto são multidisciplinares para realizar a perícia prévia – se atente à análise completa da documentação prevista no art. 51 da LRF para que possam constatar o que motivou a ruptura da empresa devedora e, principalmente, se seria reversível.
Engana-se quem pensa que a constatação prévia é algo prejudicial às recuperandas. Na realidade, de acordo com os dados fornecidos pelo Observatório de Insolvência, da Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ), após uma análise realizada no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, concluiu-se que a taxa de deferimento de recuperações judiciais sem constatação prévia era de 63% (521 processos) e 36,4% de indeferimento (298 processos), enquanto com a realização da constatação, a taxa de deferimento dos processos subiu para 81,7% (76 processos) e a de indeferimento caiu para 18,3% (17 processos).[10]
De acordo com o juiz Dr. Daniel Carnio Costa, a perícia prévia é uma providência que visa garantir a aplicação regular e efetiva da recuperação judicial em defesa da preservação dos interesses público, social e dos credores.[11]
Portanto, a criação da perícia prévia assegura ao juiz que a sua decisão será tomada a partir de documentação e informações reais, evitando, assim, que seja deferido o processamento de recuperação judicial de uma empresa inexistente ou que não faça jus ao deferimento da recuperação da atividade empresarial, que, em última análise, deve preservar a atividade empresarial, os empregos envolvidos e a circulação de bens e serviços.
___________________________________________________________________________________
[1] Recuperação Judicial 5194147-26.2023.8.13.0024, em trâmite perante a 1ª Vara Empresarial da Comarca de Belo Horizonte/MG.
[2] Na página oficial da recuperação judicial da Oi, foi disponibilizada a lista de credores após o novo pedido de recuperação judicial da empresa no ano de 2023. Acesso: https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/4d705e6d-cd28-4747-8452-0a0a616e5243/cab669cd-a3a5-831d-a0c6-0d2c99e6cae2?origin=1
[3] Gasparani, Tarsila et. al. A Perícia Prévia na Recuperação Judicial: As Práticas Adotadas pelos Peritos
Contadores e seu Nível de Influência no Deferimento do Pedido de Processamento da
Recuperação Judicial. Congresso USP – FIPECAFI, 2020. Disponível em <https://congressousp.fipecafi.org/anais/20UspInternational/ArtigosDownload/2413.pdf>. Acesso em: 03/10/2023.
[4] ALVES, Aparecida Cássia et al. A perícia prévia e sua importância para a recuperação judicial de empresas. TCC apresentado em Bacharelo em Ciências Contábeis na Faculdade Doctum de Caratinga, 2019. Disponível em <https://dspace.doctum.edu.br/bitstream/123456789/3258/1/TCC%20Cassia%20A%20e%20Cleidson%20.pdf>. Acesso em: 03/10/2023.
[5] ALVES, Aparecida Cássia et al. A perícia prévia e sua importância para a recuperação judicial de empresas. TCC apresentado em Bacharelo em Ciências Contábeis na Faculdade Doctum de Caratinga, 2019. Disponível em <https://dspace.doctum.edu.br/bitstream/123456789/3258/1/TCC%20Cassia%20A%20e%20Cleidson%20.pdf>. Acesso em: 03/10/2023.
[6] Gasparani, Tarsila et. al. A perícia prévia na recuperação judicial: as práticas adotadas pelos peritos
contadores e seu nível de influência no deferimento do pedido de processamento da
recuperação judicial. Congresso USP – FIPECAFI, 2020. Disponível em <https://congressousp.fipecafi.org/anais/20UspInternational/ArtigosDownload/2413.pdf>. Acesso em: 03/10/2023.
[7] Processo n.º 1403699-04.2023.8.12.0000, em trâmite perante a 4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso do Sul.
[8] Art. 145 do CPC: “Há suspeição do juiz:
I – amigo íntimo ou inimigo de qualquer das partes ou de seus advogados;
II – que receber presentes de pessoas que tiverem interesse na causa antes ou depois de iniciado o processo, que aconselhar alguma das partes acerca do objeto da causa ou que subministrar meios para atender às despesas do litígio;
III – quando qualquer das partes for sua credora ou devedora, de seu cônjuge ou companheiro ou de parentes destes, em linha reta até o terceiro grau, inclusive;
IV – interessado no julgamento do processo em favor de qualquer das partes.
- 1º Poderá o juiz declarar-se suspeito por motivo de foro íntimo, sem necessidade de declarar suas razões.
- 2º Será ilegítima a alegação de suspeição quando:
I – houver sido provocada por quem a alega;
II – a parte que a alega houver praticado ato que signifique manifesta aceitação do arguido.
Art. 148 do CPC: “Aplicam-se os motivos de impedimento e de suspeição:
I – ao membro do Ministério Público;
II – aos auxiliares da justiça;
III – aos demais sujeitos imparciais do processo. (…)”.
[9] Coelho, Fábio Ulhoa. Comentários à Lei de Falências e de Recuperação de Empresas – 15 ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2021, pág. 214.
[10] FILHO, Madeiro Sebastião et al. Constatação prévia: finalidade, aplicabilidade, atribuições do perito designado e legislação aplicável. Quest Journals, 2023. Disponível em <https://www.questjournals.org/jrhss/papers/vol11-issue2/11024757.pdf>. Acesso em: 03/10/2023.
[11] COSTA, Carnio Daniel et al. A perícia prévia em recuperação judicial de empresas – Fundamentos e aplicação prática. Migalhas, 2018. Disponível em < https://www.migalhas.com.br/coluna/insolvencia-em-foco/277594/a-pericia-previa-em-recuperacao-judicial-de-empresas-fundamentos-e-aplicacao-pratica>. Acesso em: 03/10/2023.